O Dom Quixote das Locadoras
Em meio ao avanço tecnológico que praticamente acabou com as locadoras de vídeo, um homem no norte do Paraná usa a criatividade para não fechar as portas
Por Fabiano Oliveira
Enquanto a maioria das pessoas procura uma sombra para se esconder do sol forte de janeiro, um homem cruza as ruas de Jacarezinho, no norte do Paraná (390 km de Curitiba), com duas grandes sacolas nas mãos e uma pesada mochila nas costas. Embora não pareça se incomodar com o calor, ele anda rápido; e só para quando encontra um cliente em potencial. "E aí? Vai levar algum hoje? Tenho um bom aqui pra você, hein?". Antes mesmo que o cliente possa responder, o homem coloca as sacolas no chão e tira, de uma delas, um filme. "Você vai gostar. Pode levar. Semana que vem você me devolve".
O homem é Hélio Biagini, de 54 anos. Há 31 ele é dono da Medieval Vídeo, a única locadora de filmes ainda em atividade na cidade. O nome não poderia ser mais apropriado. Em tempos de farta pirataria, do fácil acesso à TV a Cabo e das inúmeras plataformas digitais, o trabalho de Biagini lembra a obstinação de Dom Quixote com a obsoleta cavalaria andante da Idade Média. A comparação agrada. "Cara... eu realmente remo contra a maré. Mas acredite ou não, as pessoas ainda alugam filmes. Tanto é que, desde que abri a locadora, essa é a minha principal fonte de renda", confidencia.
O fato de Biagini se manter no mercado até hoje tem a ver com uma ideia
que ele colocou em prática em 1992, e que tem sido o carro chefe da locadora
nesses últimos anos. Na época, enquanto os concorrentes atendiam apenas nas
lojas, Biagini decidiu que iria, ele, ao encontro dos clientes. Nascia ali uma
espécie de locadora ambulante, ou delivery, como ele prefere
chamar.
"Tenho certeza que se eu não fizesse isso já teria fechado as portas, como tantos fizeram. E essa é uma possibilidade que, sinceramente, nunca me passou pela cabeça. Eu amo cinema e amo o que faço. Então, se o único jeito de continuar na ativa é ir pra rua, eu vou pra rua".
O trabalho começa logo pela manhã. Biagini faz tudo a pé, já que nunca quis aprender a dirigir carro nem moto. "Tenho fobia desse negócio. Prefiro ir caminhando", comenta. Avesso à tecnologia, diz que também nunca usou computadores para catalogar os quase 90 mil filmes que afirma ter em seu acervo. Todos os títulos, alugados ou devolvidos, são anotados em bloquinhos de papel junto com o número de telefone dos clientes. Já os filmes que ele leva para rua são separados de acordo com o que eles gostam. "Muitos alugam comigo há anos. Então eu já sei qual o estilo de filme que agrada um e outro. Procuro a satisfação do cliente, por isso valorizo demais o atendimento. É a qualidade do atendimento que faz a diferença. O produto não precisa ser exclusivo, mas o serviço sim", explica enquanto tira o suor da testa.
Os prazos para devolução também não seguem uma regra específica. É o cliente que escolhe quando vai devolver. "Às vezes o filme chega a ficar seis meses com a pessoa. Mas o legal é que eles sempre devolvem. Em mais de 30 anos de serviço, eu nunca cobrei uma única multa por atraso. Não é agora que eu iria fazer isso", ri.
Opções Diferenciadas
O imóvel onde funciona a Medieval Vídeo é pequeno; tem pouco mais de 20 metros quadrados. Quem vai ao local pela primeira vez pode se surpreender não só com a quantidade de filmes, mas também com as muitas teias de aranha nas paredes, teto, e até mesmo nas estantes de filmes. Biagini garante que não se trata de desleixo. Para ele, é justamente esse cenário que ajuda a dar um ar "medieval" à locadora.
O metalúrgico Fábio Lemos é um dos clientes assíduos da Medieval. Toda semana ele vai até a locadora, onde é possível encontrar o Biagini de segunda a sexta, das 18h às 22h. "Eu costumo vir aqui não só pra alugar filmes, mas também para conversar com o Hélio, que é um cara muito simpático e bom de papo. É legal porque aqui você pode trocar uma ideia sobre cinema", explica. "Quanto aos filmes, eu gosto dos filmes antigos; e muitos dos que eu alugo aqui a gente não acha nem na internet. O acervo dele é realmente muito bom", comenta.
A quantidade de obras antigas, aliás, é apontada como outro diferencial no trabalho de Biagini. "Eu não ligo muito para os lançamentos. Esses são fáceis de achar na internet. Na verdade sempre gostei mesmo é de trabalhar com filmes raros, e com os clássicos do cinema. Muitos em preto e branco", conta.
"Tenho filmes belgas, franceses soviéticos, iranianos, e até do Azerbaijão. Quem realmente gosta de cinema sabe que tem de tudo aqui; desde de Stanley Kubrick, a Alfred Hitchocok e Fellini".
Por causa da variedade do acervo a Medieval também atraiu clientes de cidades vizinhas como Cambará, Ribeirão Claro, Santo Antônio da Platina, e Ourinhos (SP). Por isso, vez ou outra, Biagini pega o ônibus e vai para essas cidades em busca dos antigos e de novos clientes. Orgulhoso, ele estima que já andou, num único dia, cerca de 20 quilômetros levando filmes para a clientela. "Rapaz. Faz as contas aí. Será que a distância que eu percorri já dá pra chegar até a lua?", brinca.
Sobrevivente
Ao contrário de Dom Quixote - que tinha moinhos de vento e outros inimigos imaginários para justificar sua saga de cavaleiro andante em pleno século XVI - Biagini tem enfrentado inimigos reais ao longo desses anos. A pirataria é o primeiro deles, seguido de perto pelos inúmeros sites que oferecem downloads na internet e, mais tarde, pelas plataformas virtuais como a Netflix. A dificuldade em competir com esse mercado foi o que levou muitas locadoras a fecharem as portas. Só em Jacarezinho, cidade com pouco mais de 40 mil habitantes, existiam cerca de 10 locadoras nos anos 2000. O comerciante Mauro Rédua era dono de três delas; cada uma num ponto diferente da cidade. "Foi uma época maravilhosa; a realização de um sonho que, por 14 anos ajudou a por comida dentro de casa", recorda. Nos últimos anos de locadora, Rédua lembra que perdeu muito dinheiro. O alto investimento já não dava o retorno esperado; até que em 2014, ele resolveu deixar o ramo. "Infelizmente o mercado estava cada vez mais em decadência. Por isso, mesmo com as lojas, eu já exercia outra atividade no comércio. Eu quis me preparar para que, assim que eu baixasse as portas, pudesse me dedicar a outra coisa".
Atualmente Rédua é dono de duas lojas de tintas. Uma em Jacarezinho e outra em Santo Antonio da Platina. Concorrentes na época de ouro das locadoras, hoje Rédua é cliente de Biagini, e elogia a determinação do amigo. "Ele é diferente. É um cara que soube como poucos transformar um hobbie em negócio. Ele me ajudava quando eu tinha locadora. Dava dicas. Além de generoso, o Hélio é um guerreiro, e as pessoas reconhecem isso nele".