O Padre que formou um Batalhão
Ele foi capelão do Exército Italiano, pegou em armas, recrutou soldados, foi preso, e chegou a ser condenado à morte. Mas foi em Jundiaí do Sul, no norte do Paraná, que ele viveu seus últimos dias como um padre querido pelo povo
Por Fabiano Oliveira
Em junho de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, sete soldados italianos saltaram de paraquedas na ilha de Sardenha, a oeste da península itálica. Eles foram levados por aviões alemães durante a noite, numa tentativa de não serem vistos.
O primeiro a tocar o solo foi um homem baixo, robusto, e que usava uma longa barba. Seu nome era Luciano Usai. Um padre católico. Tenente capelão do exército italiano. Embora sacerdote, Usai também ia para a frente de batalha. Aos 32 anos de idade ele já era um militar altamente condecorado. Na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), onde lutou como cabo, recebeu uma medalha de prata por bravura militar. Anos mais tarde, logo no início da Segunda Guerra, também esteve na Líbia, no norte da África. Lá ele recebeu duas medalhas de bronze por valor militar, além de outras condecorações dadas pelos exércitos italiano e alemão.
Luciano Maria Usai nasceu em San Gavino Monreale, na Sardenha, em 18 de dezembro de 1912. Ainda menino, perdeu o pai durante a Primeira Guerra Mundial. Pouco tempo depois sua mãe o colocou no seminário de Ales. Mais tarde ele frequentou o Instituto de Missões Estrangeiras dos Padres Xaverianos, em Parma. Em maio de 1939, Luciano Usai foi ordenado padre e, já no ano seguinte, enviado para a Líbia como Capelão do 31º Batalhão do Exército Italiano na África.
De volta à Itália, após mais de dois anos na África, o sacerdote encontrou grande parte do país ocupado pelas tropas anglo-americanas. Em 1943, Benito Mussolini foi destituído do cargo e preso pelo Grande Conselho Fascista, que deixou de apoia-lo. No entanto, pouco tempo depois, o ex-ditador foi resgatado por tropas alemãs. Numa última tentativa de impor resistência Mussolini fundou - ainda em 1943 - a República Socialista Italiana (RSI). Uma "república" bem menor; que abrangia apenas a parte do território italiano que ainda não estava ocupada pelas tropas inimigas do ditador.
Destituído, e sem o suporte dos líderes do partido fascista, Benito Mussolini ainda tinha o apoio do exército nazista. Mesmo assim ele precisava de voluntários italianos para a RSI. E foi aí que o padre Luciano Usai entrou em cena, e deixou seu nome marcado na história que se seguirá logo abaixo.
Um Padre que Recruta Soldados
No dia 08 de setembro de 1943 foi assinado um armístico (cessar-fogo) entre as tropas anglo-americanas e as tropas italianas. Segundo o jornalista italiano Beppe Meloni foi um dia de festa na Sardenha. "Pessoas felizes saíam às ruas convencidas de que a guerra realmente havia acabado. Comboios de tropas alemãs passavam diariamente pelo 'Carlo Felice' e partiam da ilha para a Córsega. O acordo entre o general alemão Lungerhausen e o italiano Antonio Basso funcionou e os alemães deixaram a ilha quase imperturbada. Mais tarde, as tropas aliadas (EUA, Reino Unido, França) chegaram à Sardenha", relatou.
Em meio a esse clima de euforia e com grande parte do exército italiano dissolvido, padre Luciano Usai tentou voltar para a Sardenha, mas foi bloqueado no porto de Lazio devido à falta de navios. No porto ele se deparou com inúmeros soldados sardos que também queriam voltar para casa. Muitos deles estavam em dificuldades, e embarcar para a Sardenha era a chance de rever seus familiares e obter ajuda. O professor e pesquisador Raffaele Sari Bozzolo relata:
"De acordo com a versão dos fatos fornecida pelo próprio Usai, foi neste momento que ele decidiu fazer algo e foi ao Vaticano, por intercessão de altos prelados, obter uma audiência com o comando alemão de Frascati; que o apoiou na iniciativa de abertura de um centro militar em Capranica. Um posto de coleta equipado com camas e mantimentos para os soldados sardos que esperavam para retornar à Sardenha".
Assim que o padre Usai começou a anunciar a abertura do centro de coleta nas emissoras de rádio, inúmeros soldados sardos começaram a chegar a Capranica, uma pequena comunidade localizada na região de Lazio. Os números são incertos, mas há quem diga que cerca 20 mil sardos procuraram o centro de coleta. A concentração chamou a atenção do coronel Francesco Maria Barracu, subsecretário de Estado e vice presidente do Conselho de Ministros da República Socialista Italiana (RSI), que foi ao encontro do padre Usai.
Barracu também era sardo, e amigo de longa data de Usai. Animado com o sucesso do centro de coleta, ele propôs ao padre que criasse um batalhão de voluntários da Sardenha. Uma unidade militar que estivesse a serviço da RSI. Aos soldados que já estavam no centro foi apresentada a seguinte condição: ou eles se alistavam no exército de voluntários, ou seriam enviados para trabalhar na Alemanha, já que não teriam serviço na Itália. O mesmo valeria para os soldados que estavam presos por não aceitarem a ocupação nazista. E assim, para escapar da deportação, muitos acabaram se alistando ao batalhão da RSI, que mais tarde receberia o nome de Batalhão de Voluntários da Sardenha Giovanni Maria Angioy.
O recrutamento dos voluntários sardos despertou a curiosidade da imprensa nazista. A revista alemã Signal enviou um jornalista para entrevistar o coronel Bartolomeo Fronteddu, designado pela RSI para comandar o Batalhão. Ao apresentar a unidade militar Fronteddu disse ao jornalista:
"Você terá a oportunidade de encontrar alguns homens realmente interessantes, como um capelão militar que é adornado com a insígnia germânica de navios-tanque de assalto, bem como a cruz de ferro de segunda classe "
O Massacre dos Desertores
Em novembro de 1943 o Batalhão de Voluntários da Sardenha se mudou para o quartel de Lungara, em Roma. A essa altura, o coronel Barracu já havia enviado oficiais para treinar os soldados. O exército alemão ajudava com mantimentos e armamentos, e o padre Luciano Usai exercia a função de capelão.
Dias após a mudança, alguns soldados voluntários desertaram e voltaram para Capranica. Eles fugiram ao tomarem conhecimento de que o batalhão seria deslocado para Cassino; onde se concentrava a resistência alemã contra o avanço dos anglo-americanos. O padre Usai, na tentativa de fazer com os desertores retornassem, esteve algumas vezes em Capranica junto com o coronel Fronteddu, mas não conseguiu convencê-los.
No dia 17 de novembro daquele ano, porém, os nazistas (que queriam os voluntários como companheiros no campo de batalha) decidiram agir. Eles enviaram dois caminhões até Capranica, e prenderam 18 desertores. Eles teriam sido delatados por Salvatore Alessi, um desertor que fora recapturado dias antes e revelado o esconderijo dos demais fugitivos. Os prisioneiros foram levados de caminhão até uma estrada fora da cidade, e depois fuzilados juntamente com Alessi. Apenas um dos desertores, Rinaldo Zuddas, sobreviveu. Segundo um artigo publicado por Fábio Ceccarini no site capranicastorica.it, Zuddas tentou fugir e, durante a tentativa, foi atingido com um tiro no braço e outro na perna. Ele caiu num riacho na beira da estrada e escapou dos alemães se fingindo de morto. Socorrido por moradores locais e recuperado dos ferimentos, Zuddas seria "peça-chave" no julgamento do padre Luciano Usai, anos depois.
O Julgamento de Padre Usai
A missão que levou o padre Usai e outros seis soldados a saltarem de paraquedas na Sardenha, na noite de 23 de junho de 1944, nunca ficou muito clara. Em seu artigo, Raffaele Bozzolo trouxe duas versões. "Seus simpatizantes explicaram que ele estaria no cumprimento de uma missão humanitária: levar sustento econômico às famílias dos republicanos da Sardenha que lutavam no norte da Itália. Enquanto - segundo seus acusadores - seu verdadeiro objetivo era sabotar e envenenar várias fontes de água para realizar um massacre. Sobre isso, muitas dúvidas permaneceram e nunca houve clareza total", escreveu Bozzolo, que depois completou:
"Ainda hoje, para alguns, o padre Usai é um herói e, para outros, um personagem pelo menos ambíguo".
Ainda que o real motivo de padre Usai e seus companheiros terem sido enviados à Sardenha permaneça um mistério, o fato é que pouco depois de terem aterrissado na ilha seis deles foram presos e levados para um campo de concentração, na região de Oristano. Gino Mamberti, o único que conseguiu escapar, continuou trabalhando para o serviço secreto até o fim da Guerra.
Em Oristano padre Usai ficou nove meses preso, até que foi julgado pelo Tribunal Militar em março de 1945. As acusações contra o capelão eram graves: espionagem, alta traição contra o exército italiano, e recrutamento ilegal para guerra. Em sua defesa, Usai alegou que os agentes enviados para a Sardenha, na realidade, não queriam realizar ações de espionagem. Eles queriam simplesmente voltar para as suas famílias, das quais foram separados por causa da guerra. No julgamento também foi ouvido o relato de Rinaldo Zuddas, o único sobrevivente do massacre dos desertores, ocorrido dois anos antes. Zuddas, que talvez não soubesse da delação de Salvatore Alessi, apontou o padre Luciano Usai como o principal responsável pelo fuzilamento dos companheiros. Rino Alessi, irmão de Salvatore Alessi, também prestou depoimento. Assim como Zuddas, ele acusou o padre Usai de ser o motivador do massacre.
A decisão do Tribunal foi descrita pelo pesquisador Lorenzo Di Biase em um artigo para o Boletim Histórico, Arquivístico e Consular do Mediterrâneo.
"Em 16 de março de 1945, o julgamento terminou com a absolvição de todos os réus - que ainda estavam condenados pela Comissão para o expurgo contra o fascismo, dois anos de confinamento - exceto o padre Luciano Usai para o qual o Ministério Público pediu a pena máxima, ou seja a sentença de morte com tiro nas costas".
A sentença, porém, foi alterada, e o padre foi condenado a 30 anos de regime fechado na prisão. A mudança na pena foi em razão das condecorações do tenente capelão, que serviram como atenuantes. Na sequência, Usai foi transferido para a prisão romana de Forte Bocea. Mas em 1946, com a anistia de Togliatti, ele foi colocado em liberdade, cumprindo pouco mais de um ano da pena.
A Vinda para o Brasil
Em 1978, na celebração dos 25 anos dos padres xaverianos no Brasil, Dom Geraldo Fernandes Bijos, arcebispo de Londrina-PR, relembrou um fato ocorrido quando ele ainda era padre em Curitiba.
"Vinte e cinco anos atrás, um padre xaveriano veio ao Brasil explorar a possibilidade de abrir um seminário para a formação de missionários que seriam enviados a outros países cristãos. Depois de estar no Rio Grande do Sul, ele passou por Curitiba. Eu o acompanhei junto ao arcebispo e, poucos meses depois, chegou o primeiro grupo de xaverianos da Itália ".
O xaveriano de quem o arcebispo falava era o padre Luciano Usai. Depois de se ver livre da prisão na Itália e permanecer alguns anos na Sardenha, ele pediu permissão aos seus superiores para ser missionário no Brasil. Os superiores não só concordaram, como também o incumbiram de encontrar um lugar para que a congregação pudesse se instalar e trabalhar no país. Um ano após a visita lembrada por Dom Geraldo, o padre Usai integrava a primeira turma de xaverianos a se instalar no Brasil. Era o dia 27 de julho de 1953.
O primeiro campo de trabalho dos xaverianos foi no Estado do Paraná. No entanto, enquanto a maioria deles se concentrou na região norte do Estado, padre Luciano Usai foi designado para trabalhar na cidade de Cerro Azul, a poucos quilômetros de Curitiba. Na cidade com pouco mais de 18 mil habitantes, Usai se mostrou um pároco preocupado com as causas sociais. Em 1954, ele comprou um imóvel com uma grande casa, reformou o prédio, e dois anos depois instalou ali um internato para acolher crianças carentes. Batizado de "Instituto São Francisco Xavier", o internato chegou a abrigar 60 menores, e precisou ser ampliado para receber mais internos.
Seu trabalho em favor dos menores deixou marcas profundas entre os moradores. Até hoje o sacerdote italiano é lembrado como uma das personalidades mais importantes da história da cidade. Hoje Cerro Azul tem uma rua e uma escola municipal com o nome de Padre Luciano Usai.
Jundiaí do Sul
Em meados da década de 1960, padre Usai decide deixar a Congregação dos Padres Xaverianos para se tornar um padre diocesano. Ou seja, um padre ligado diretamente a um bispo local, e não mais a uma congregação. Luciano Usai, então, pede para ser incardinado na Diocese de Jacarezinho, no norte do Paraná. Assim, em 1966, ele tem uma breve passagem pela paróquia São Sebastião, na cidade de Wenceslau Brás. Meses depois, ele é designado para trabalhar como formador no Seminário Nossa Senhora da Assunção, em Jacarezinho. Em 1970, padre Usai torna-se reitor desta instituição.
Um ano depois padre Usai pede para ser colocado em uma paróquia. O bispo atende seu pedido e o envia como pároco de Jundiaí do Sul-PR, uma pequena cidade com cerca de três mil habitantes, e a 70 quilômetros de Jacarezinho.
Ali, padre Luciano (como era conhecido), construiu um centro catequético para as crianças, a gruta de Nossa Senhora de Lourdes, e o morro do crucificado. O comerciante aposentado, Antonio Zava, 80 anos, tem boas lembranças do antigo pároco.
"Era uma ótima pessoa. Quando chegou aqui na cidade nós não tínhamos televisão. Então, às vezes, quando meus filhos queriam assistir alguma coisa, eu ia com eles na casa paroquial. Lá as crianças ficavam todas sentadas no chão, vendo TV, e eu ficava conversando com o padre. Ele ficava horas contando o 'causos" da época da guerra, na Itália", relembra.
Zava também descreve padre Luciano como brincalhão e carismático. "Todos aqui na cidade gostavam dele. Ele fazia amizade com as pessoas muito fácil", afirmou. Jorge Luiz Godoy também conviveu com o padre Luciano. Ele fazia parte de um dos grupos de jovens organizados pelo pároco na cidade, além de dirigir para o padre que já não andava bem de saúde. Das inúmeras lembranças, um fato em especial o marcou bastante.
"Certa vez eu o acompanhava na compra de um colchão para um senhor a quem ele dava assistência. Naquela época era muito comum os colchões de capim e, na loja, foi o que o vendedor ofereceu. Ele comprou e quando estavam colocando no carro o padre não quis, dizendo em forma de pergunta: 'Porque eu, sendo um padre, posso dormir em um bom colchão e ele, por ser mais humilde, não pode? De maneira alguma. Vou levar um melhor'. Por mais simples que seja essa passagem, tenho como exemplo por toda minha vida.", relembra.
Godoy também recorda que, durante muitos anos, a única "ambulância" que havia na cidade era uma "perua kombi" que padre Luciano Usai comprou graças à doações que ele recebeu da Europa. "Ele Construiu um prédio com a ideia de um colégio, com a intenção de viabilizar cursos técnicos. Também construiu banheiros públicos para servir a população que precisava estar longe de suas residências. Sua cultura era tão diferenciada que nem imaginou que muitas pessoas não saberiam conservar aquela estrutura", destaca.
Segundo relatos de moradores, padre Luciano tinha problemas cardíacos; e costumava ir a Jacarezinho para fazer acompanhamento médico. Em 1976, uma revista da Diocese fez referência ao trabalho do pároco em Jundiaí do Sul e à sua saúde fragilizada. "Apesar de doente, o padre Luciano mantém a vida religiosa da paróquia auxiliado pelos ministros extraordinários da Eucaristia e da palavra. Continua firme o movimento dos Marianos, do Apostolado, Filhas de Maria, Cursilhistas, Movimento Familiar Cristão, e dos jovens".
Em 1981, após se sentir mal, padre Luciano é levado às pressas para o hospital. Apesar do esforço dos moradores para socorrer o pároco, ele faleceu no dia 11 de setembro daquele ano. Tinha 68 anos de idade. A versão contada pelos moradores vai na contra-mão da versão difundida na Itália, de que o padre morreu enquanto celebrava a Missa. Seu corpo foi velado e sepultado na igreja matriz de Jundiaí do Sul, cidade onde viveu e trabalhou por 10 anos e conquistou a admiração dos moradores.
Em seu testamento ele escreveu:
"Deixo este vale de lágrimas sem levar comigo ódios ou rancores, ou simplesmente ressentimento. Perdôo de todo coração aos que me ofenderam, e desejo que também os outros me perdoem de todas as minhas ofensas voluntárias e involuntárias".