O Escultor das Catedrais
O artista catalão já tinha quase 70 anos quando esculpiu imagens para duas catedrais no norte do Paraná. Embora pouco conhecido, esse experiente artista deixou uma obra que impressiona pelo realismo e pela beleza
Por Fabiano Oliveira
Em 1950 Jacarezinho vivia o auge do desenvolvimento. Com uma grande produção de café e cana-de-açucar, a cidade figurava entre as mais importantes do Paraná. Na educação, o Colégio Cristo Rei e a Escola Imaculada Conceição (ambos no regime de internato) eram referências em todo o Estado. No aeroporto constantemente pousavam personalidades de renome nacional; e até a Família Imperial Brasileira escolheu a cidade para viver.
Foi em meio a esse cenário
que Silvestre Blasco, um escultor vindo de Barcelona, na Espanha, chegou para trabalhar em uma das principais obras arquitetônicas da região: a nova catedral de Jacarezinho. O templo, cuja
a construção havia começado no início da década de 1940, foi projetado para ser um
dos mais belos do Estado e a obra estava na fase final. Enquanto o fluminense Eugênio Sigaud finalizava os painéis que - anos mais tarde - seriam tombados como patrimônio histórico do Paraná, Blasco tinha a missão de esculpir as imagens internas e externas da nova igreja. Uma tarefa que o experiente escultor catalão levou anos para executar.
Um "Trotamundos"
Silvestre Blasco i Vaqué nasceu em 14 de agosto de 1887 numa pequena cidade da Catalunha chamada Torroja Del Priorat, famosa pela produção de vinhos. Seus pais e avós eram moleiros; profissão que Miquel, um dos sete irmãos de Silvestre, também seguiu. A casa da família existe até hoje. "Atualmente os bisnetos do irmão de Silvestre é que moram na casa. Montserrat, que também é escultura, e Miquel, que tem o mesmo nome do bisavô. Ambos são solteiros, e já tem uma certa idade", conta Merce Peri Viñes, que nasceu e foi criada na cidade.
Foi na infância que Silvestre começou a se interessar pela escultura. Na adolescência estudou artes na Escola Llotja, em Barcelona, e foi aluno de Pablo Gargallo; tido como um dos escultores espanhóis mais importantes do século XX.
Aos 20 anos ele deixou a Catalunha e se tornou um itinerante pelo mundo. Por causa dessa paixão por
viajar, Ángel Marsal (1900-1988), um famoso crítico de artes espanhol que em 1972 escreveu um artigo sobre Silvestre Blasco, o apelidou de "trotamundos", que pode ser traduzido do espanhol como "viajante" ou "aventureiro". Marsal afirma que o artista não andou só pela Europa, mas também pelo Chile, Argentina, Estados Unidos e Brasil, a fim de aperfeiçoar sua arte. Aqui ele teria trabalhado com um escultor chamado Igancio Tormo, sobre o qual não foi possível encontrar nenhuma outra referência. Foi durante suas andanças que Silvestre Blasco também se aventurou na literatura. Ele escreveu, provavelmente em 1913, uma peça teatral chamada "Mentor: Fantasia em Três Dias".
Ainda segundo Ángel Marsal, Blasco só voltaria para casa 10 anos depois. "Regressou a Espanha pouco depois de terminar a primeira guerra mundial e se estabeleceu de novo em Barcelona, onde se casou. Fez exposições, serviu ordenanças, trabalhou com afinco e fez muitas viagens. Teve filhos, dois homens, Valentín e Sixte, ambos pintores notórios. Um sobrinho seu, Mentor, também se tornou pintor. Assim foram passando os anos, sem que o impulso de viajar pelas estradas deixasse de crescer com excessiva exigência no inquieto artista."
No entanto, aos 64 anos, Silvestre Blasco resolveu que estava na hora de, mais uma vez, cruzar o Atlântico e partir para a América. Uma reportagem publicada no jornal catalão La Vanguardia Española, feita em 15 de abril de 1961 - quando Blasco já estava no Brasil - falou sobre a decisão do escultor:
"Vendo seus filhos adultos e se sentindo dono de sua vida novamente, ele retorna à sua aventura, mudando-se para o Brasil, agora com os cabelos totalmente grisalhos, de um branco imaculado, mas com uma saúde, uma energia e entusiasmo de vinte anos."
Silvestre Blasco desembarcou no porto de Santos em dezembro de 1951. Uma pesquisa realizada pelo Museu de Artes Contemporânea do Paraná (MAC) aponta que, após o desembarque, o escultor ficou alguns anos no Estado de São Paulo; onde teria realizado algumas obras. Em abril de 1953 Valentín Blasco, o filho mais velho do escultor, desembarcou no Brasil acompanhado da esposa e do filho. E em junho do mesmo ano, Angela Brugueras i Poch - esposa de Silvestre - também veio ao encontro do marido. "Assim que chegamos ao Brasil fomos para Jacarezinho. Eu era muito pequeno, mas cheguei a estudar no Colégio Cristo Rei, ao lado da Catedral em que meu avô e meu pai trabalhavam. Eu, criança que era, estudava e jogava 'bets' na rua com os amigos", lembra Germán Blasco, filho de Valentín e único neto de Silvestre.
Na Catedral de Jacarezinho
Durante grande parte da década de 1950 até 1961 quem passava pela catedral de Jacarezinho já havia se acostumado a ver o catalão de cabelos grisalhos na entrada da igreja. Era ali, sentado numa banqueta e munido de seus instrumentos de trabalho, que Silvestre Blasco dava formas humanas aos enormes pedaços de madeira que estavam diante dele.
O professor aposentado Américo Felício de Assis, 84 anos, era coroinha da catedral nessa época. Ele acompanhou grande parte do trabalho do escultor.
"Ele ficava horas sentado ali, com os olhos fixos no trabalho. Nem o 'entra e sai' de gente na Igreja parecia tirar sua atenção. Ele tinha um ajudante, que tirava o grosso da madeira, e depois ele começava o trabalho", recorda.
Da madeira bruta Blasco talhou sete grandes imagens policromadas que estão no interior da igreja. Elas representam Santa Terezinha do Menino Jesus, Santo Antônio de Pádua, São Sebastião, São José, São Vicente Palotti, o Sagrado Coração de Jesus e a Imaculada Conceição. Apesar da beleza do trabalho, os fiéis se espantaram com o que viram. Segundo Paulo Cesar Botas, durante uma entrevista para o MAC, em 1985, o estilo empregado pelo escultor era incomum para os padrões locais. "Ora, seguindo a tradição espanhola da imaginária religiosa, fazem-se presentes em suas obras os princípios do verismo e da expressividade emocional. Assim, Silvestre Blasco esculpe a imagem da Imaculada Conceição do altar-mor demasiado humana para a população local, algo inadmissível para a época".
Américo Assis se recorda da polêmica. Ele também se lembra de uma jovem que, segundo ele, tinha o rosto muito parecido com a imagem da Imaculada feita por Silvestre Blasco. "Todo mundo falava que ele fez a imagem inspirado pela jovem. Era, de fato, uma mulher muito bonita que morava na cidade. E, realmente, a imagem se parece muito com ela", afirma.
Para a fachada da catedral Blasco fez imagens de pedra. As quatro que estão perfiladas no balcão central medem três metros e meio de altura e representam o apóstolo São Mateus, São Pedro, São Paulo e o profeta Elias. Mais ao alto, com quatro metros de altura, está uma imagem da Imaculada Conceição olhando para o céu.
Silvestre Blasco também é o responsável pelas imagens de madeira que estão na capela da casa episcopal de Jacarezinho.
Valentín Blasco
Ainda que seja o artista responsável pela execução das obras na catedral, sabe-se que Silvestre Blasco não trabalhou sozinho. O filho mais velho dele, Valentín, ajudou na execução do projeto. Em entrevista ao Museu de Artes do Paraná em 1985, a senhora Reacy Cazarote (moradora já falecida da cidade) disse que Valentín era quem policromava as imagens feitas pelo pai. Além dele um outro escultor, de nome Pablo, ajudava a talhar a madeira, tirando a parte mais pesada e facilitando o trabalho para Silvestre.
Também são de autoria de Valentim os quadros que compõem a via-sacra da catedral. Ao todo são 14 quadros representando as 14 estações que descrevem o caminho de Jesus até o calvário. Curiosamente, a 15ª estação não foi pintada.
O fato é que Valentín Blasco foi um pintor de relativo sucesso, embora Sixte - o filho mais novo de Silvestre - tenha alcançado um reconhecimento maior. A reportagem do La Vanguardia, de 1961, dizia que Valentín Blasco vivia e trabalhava em São Paulo. Informação confirmada pelo filho dele, Germán, que atualmente vive em Barcelona e tem 72 anos. "Moramos em Jacarezinho por aproximadamente cinco anos. Depois, ficamos uns meses em Curitiba e seguimos para São Paulo. Morávamos no Valo Velho, na região do Campo Limpo, onde meu pai tinha um galpão para executar seus trabalhos", recorda.
Valentín também pintou um quadro que está no altar-mor da paróquia Divino Espírito Santo, em Siqueira Campos (80 km de Jacarezinho). O quadro que retrata a vinda do Espírito Santo sobre os apóstolos é de 1964, e é muito admirado pelos fiéis.
A carreira do pintor, no entanto, não foi longa como a do pai. Valentín morreu, em 1967, na cidade de São Paulo. Ele tinha apenas 47 anos de idade.
Silvestre Blasco em Londrina
Após terminar seu trabalho em Jacarezinho, em 1961, Silvestre Blasco fez algumas obras para a arquidiocese de Londrina. Contratado por Dom Geraldo Fernandes Bijos, Blasco esculpiu um altar e um enorme crucifixo de madeira para a catedral da cidade. Com a construção da atual catedral, em 1972, o altar encomendado pelo bispo foi substituído. Já o crucifixo pode ser visto na entrada da igreja, à esquerda da entrada principal.
Em 1965 Blasco participa do 1º Salão de Arte Religiosa Brasileira, realizado em Londrina. Na ocasião ele apresentou três "estações" da via sacra que hoje estão no Seminário Paulo VI.
O talento do escultor chamou a atenção do padre Bernard Carmel Gafá que, na época, era pároco da paróquia Imaculada Conceição, também no centro da cidade. O padre, então, encomendou diversas obras para a paróquia.
Um dos trabalhos de Blasco que mais chamam a atenção na igreja é o crucifixo que está acima do sacrário. Nele, a imagem de Cristo está com uma túnica, diferente das imagens tradicionais, onde o crucificado está seminu. "Eu pedi para que fosse feito assim. A ideia era fazer Cristo com roupa, porque é como ele era representado na igreja primitiva. É Cristo Sacerdote e Vítima", explica Bernard Gafá que, aos 81 anos, voltou a trabalhar na paróquia e recebeu o título de "monsenhor" pelos trabalhos prestados à Igreja.
Blasco ainda esculpiu a porta do sacrário, e a via-sacra que está nas paredes da igreja. Uma curiosidade é que os quadros da via-sacra também são diferentes do que normalmente se costuma ver nas igrejas. As obras mostram apenas o rosto de Jesus.
"Lembro-me que fui buscar essas obras em São Paulo, onde ele estava morando em 1968. Ele tinha uma espécie de garagem onde fazia suas esculturas. Por causa da idade avançada, ele chegava a amarrar algumas ferramentas nas mãos para poder trabalhar", conta o monsenhor Gafá.
De Volta para a Espanha
Em janeiro de 1972, Silvestre Blasco voltou para a Espanha. Embora tenha ficado mais de 10 anos ausente, seu retorno não passou em branco. O artigo de Ángel Marsal para a Revista Jano, uma das mais tradicionais revistas culturais da Espanha, foi escrito justamente por causa de sua volta ao país.
Prestes a completar 85 anos, mas sem deixar de trabalhar, Blasco viu seu filho Sixte Blasco (1926-1996) se transformar em um pintor renomado dentro e fora da Espanha. Ao mesmo tempo seu sobrinho Mentor Blasco (1919-2003), que vivia em Paris, também havia se tornado um pintor bastante premiado na Europa. Quanto ao experiente escultor, suas obras mais conhecidas ainda são as que estão na catedral de Jacarezinho. Em seu artigo (escrito em 1972), Marsal faz questão de destacar:
"A nova catedral brasileira guarda o melhor da obra de um escultor espanhol, digno da lendária fama dos nossos maiores aventureiros, descobridores de terras e fundadores de cidades".
Silvestre Blasco morreu em Barcelona no ano de 1976, aos 89 anos. Em 14 de abril daquele ano o Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, informou a morte do escultor em seu obituário. Em junho do mesmo ano a revista La Estafeta Literária, de Madri, publicou:
"O escultor Silvestre Blasco, discípulo de Pablo Gargallo, tinha quase noventa anos. Ele trabalhou duro, mas era mais conhecido do outro lado mar do que pelo seu trabalho aqui, como acontece tantas vezes. Depois de morar e lutar aqui, Blasco mudou-se para as Américas e o Brasil foi justamente o país que talvez mais tenha acolhido seu trabalho. Grande parte dessa obra está sacudida pela vida, pela sensibilidade criativa, pela pedra que em si mesma se purifica na arte."
Germán, que esteve com Silvestre em seus últimos anos de vida, destaca a personalidade calma do escultor. "Ele me ensinou a ver a vida de um jeito diferente. Sem a perspectiva do dinheiro. Meu avô nunca foi apegado a isso. Ele era um homem livre, e me mostrou que para viver bem não é preciso ter mais que o necessário".